17 de fev. de 2011

Para além da cor da pele: a dialética dos feminismos brasileiros

Por um feminismo étnico de classe econômica
Por convenção, nós feministas nos acostumamos a dizer que existem “vários feminismos” ao invés de um. E por conveniência mútua, nós feministas também nos conformamos com as facilidades estratégicas desta convenção. Todavia, quando pensamos nas dificuldades existenciais do movimento feminista, mais especificamente o brasileiro, nós Maçãs Podres nos perguntamos se já não seria a hora do feminismo teórico agregar em si toda a variedade particular e histórica de cada um dos movimentos de libertação das mulheres numa só utopia¹?
Antes, porém, é necessário entender que a atual conjuntura política que faz com que, cada vez mais, o feminismo se fragmente em “vários”. Não há como negarmos as particularidades, nem buscamos uma totalidade, sem vislumbramos a dinâmica racial que privilegia as mulheres brancas desta sociedade. Sem que venhamos a reconhecer o quanto fomos, somos e nos induziram a negligenciar tal questão. A política da representatividade tem vendido o feminismo como vasos que devem ocupar lugares separados nas prateleiras política dos governos. O árduo trabalho de se construir um feminismo étnico de classe econômica, em sua múltipla completude sexual, abarca a necessidade de reconhecemos o racismo como uma das mais cruéis estruturas do patriarcado, estrutura esta que colocou e coloca as mulheres negras e brancas do mesmo lado, mas em cantos opostos. Já é hora dos feminismos repensarem suas convenções.
A dialética dos feminismos
Não é de se estranhar o encantamento patriota de nosso povo com as cores da bandeira. Este é culto dos olhos verdes, do cabelo amarelo, do “sangue azul” e da pele branca. Ora, depois das armas e da fé, naturalizar as diferenças sociais pelas diferenças físicas não é a mais comum das estratégias ideológicas de dominação?
Em grosso modo, os mitos da superioridade física masculina e da superioridade intelectual branca sempre tiveram como objetivo explorar trabalho dos negros e excluir as mulheres brancas das atividades transformadoras da sociedade. Os colonizadores precisavam de pernas, braços e mãos de obra “fortes” para suas plantações, assim como os homens burgueses ainda precisam dos nossos úteros funcionando como fábricas.
Pelo mesmo motivo ideológico, as mulheres brancas ainda são cultivadas como flores. Os homens negros tratados e xingados como animais. E as mulheres negras exaltadas como “vulcões (sexuais)”. Sobre as mulheres negras e brancas e os homens negros recai a simbologia da natureza que “deve” ser dominada. Entretanto nenhuma construção ideológica se sustenta sem as diferenças econômicas. E quanto mais separados em “lotes”, mais fácil se torna o controle dos oprimidos.
A mística (heteros)sexual das identidades raciais
Da pedra, se fez a roda. Do aço, espada. Da madeira, barco. Do vapor, energia. Do corpo humano, animal, máquina e plástico. A construção das relações sociais e de nossa sexualidade respondem ao nosso modo de produção econômico, assim como a construção de nossa identidade de gênero responde ao processo de desenvolvimento cultural.
A alienação do corpo, a mercantilização do sexo, a virtualização da sexualidade comprovam o quanto as relações psicossociais incorporam as práticas das relações de trabalho e do modo de produção econômico. Na simbiose da sobrevivência humana, os homens brancos creditaram para-si os adjetivos de conquista: caçadores, descobridores, cientistas e construtores. Não há na simbologia da identidade masculina branca a dicotomia esquizofrênica lançada sobre as mulheres ("a santa e a puta"), “o Deus divino torna-se homem e o homem torna-se a salvação da humanidade”. Nas estereótipos masculinos a transcendência busca a completude.
Durante os séculos que se passaram até publicação de “O segundo sexo” (1949), os homens burgueses derrubaram o poder da superstição, da nobreza e das aristocracias, mas mantiveram da dominação social com a ideologia da superioridade racial e do machismo. Porém, quando as mulheres brancas proletárias adentraram as fábricas e as esposas burguesas conquistaram os direitos políticos que sua classe econômica conquistou na Revolução Francesa, não havia como impedir que Beauvoir, e posteriormente Betty Friedan (A mística feminina -1963), tirarassem o feminismo dos manifestos e das ruas e também o colocassem dentro dos centros intelectuais e acadêmicos. Ao derrubarem os mitos da essência feminina (branca), afirmando que “não se nasce mulher, torna-se”, pois “é a sociedade quem nos educa para sermos esposas, mães e donas de casa”, estas mulheres ofereceram respostas teoricas capazes de influenciar o leme das mais diferentes formas de militância do moviemento de mulheres. Contudo, suas explicações não abarcavam as condições e os contingentes materiais e históricos que determinam a construção das mulheres de diferentes etnias.

A Cor Púrpura:
As questões  que antecederam a força do feminismo negro
Após a escravidão estrutural, a medicina e as leis basearam-se em Gobineau para outorgarem aos negros “a verdade científica” da “loucura”, da “malandragem” e da “bandidagem”. As senzalas viravam guetos ou favelas. O Estado então abriu os portos para os imigrantes europeus e, se o “homem/humanidade” se faz com atividades produtivas, como ficaram os homens negros sem emprego? Cachaça para matar a fome, esquecer o frio e anular as dores sociais do corpo e da mente. Os presídios abrem então as portas e escondem o que os brancos não querem ver, ajudando a sociedade moderna e civilizada a reconduzir os filhos dos filhos de África para novas senzalas. Mas é preciso que existam braços fortes dispostos, inclusive, para os rudes trabalhos domésticos. Com a sutil delicadeza de um bico de pena, educadamente, Isabel assinou o primeiro contrato de trabalho do capitalismo brasileiro para as mulheres negras: a institucionalização das empregadas domésticas.
Enquanto Bertha Lutz estudava em Paris e lia a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1771), séculos depois de Olympe de Gouges ser decapitada, as mulheres negras se viram obrigadas a sustentarem toda a família que havia sido lançada as ruas sem terras, capital ou educação. Dentro das mesmas grandes casas que as escravizaram, surgiu o seu primeiro emprego. Enquanto nos organizávamos para reivindicarmos o voto (e votávamos), as mulheres negras eram obrigadas a limpar a branca privada de louça e porcelana da família burguesa em troca do dinheiro acumulado com a escravidão.
Elas nunca conheceram na pele o mito da fragilidade feminina. O espaço público sempre foi sua principal área de atuação. Nunca seus gestos se despedaçaram como pétalas sob o sol. Nunca seus companheiros e filhos negros tiveram a fina educação que fidalgamente pudessem classificá-los como cavalheiros. Só as mulheres negras sabem o quão é/foi doloroso ter estripado de seu corpo a humanidade que carregamos como estigma. A realidade concreta exploração do trabalho obrigou-as a reconstruírem a significância de sua comunidade. A escravidão lhes deu a mística do corpo forte e, a luta das Dandaras contra a escravidão, lhes rendeu a mística viril de rebeldes guerreiras.
Fica lógico então entender que jamais as mulheres negras se viram representadas na destruição da “tradicional mística feminina”, pois, na hierarquia racial dos gêneros, ser negra significava ser “o quarto sexo”. Elas tiveram que cuidar da casa dos outros e dos homens negros. Mas, quem as “acolhia”?

O estranho fenômeno das bundas sem seios
e dos seios sem bunda: apenas "cabeças e vaginas"?
Somos um país de cultura escravocrata, nascido da invasão estrangeira e um quintal histórico da política estadunidense. Logo, o desejo de boa parte das mulheres brasileiras de se parecerem uma “Barbie de seios fartos” é compreensível, pois esta é uma das funções da alienação ideológica na história econômica das lutas de classes (sexuais e raciais). Todavia, como explicar que atualmente ocorre nos EUA um fenômeno outrora impensável: a corrida das mulheres brancas por implantes de silicone nos glúteos e nos lábios?
Nas últimas cinco décadas, o movimento negro elaborou a reconstrução dos valores de sua comunidade, com sólidas bases na ancestralidade africana, e obrigou a grande mídia a expor “redefinição” dos conceitos estéticos. A imagem “Beautiful do 100% Negro”, paulatinamente penetrou no consciente coletivo. E, de Naomi Sims (1967) a Naomi Campbell, a mulher negra passou de “exótica” a padrão de beleza politicamente estabelecido (não sem que antes, as modelos tivessem que raspar ou alisar seus cabelos).
O que eram seios fartos, pele branca e “lábios finos”, se sentiu impelido a desejar mais. Mais lábios, mais bronzeado, mais carne dos trópicos. A intervenção conhecida como “bumbum brasileiro” é sim uma necessidade construída no patriarcado do capital. É mais uma robotização coisificada do corpo. Mais uma mercantilização da sexualidade, baseada em outro dos novos padrões de beleza platônicos e impossíveis de ser atingidos por todas as mulheres. Contudo, também é possível se levantar a hipótese que tal fenômeno seja fruto da dialética racial dos sexos, nos períodos posteriores a luta “Black Power”. As mulheres brancas reconheceram que é bonito ser negra, mas sem abrir mão do verde, amarelo, azul e branco. Sem abrir mão dos privilégios sociais exigidos nos classificados de emprego. Ser branca significa ser mais facilmente aceita.
A possibilidade da alteração plástica da anatomia é concretamente uma agregação de novos valores a um corpo socialmente mercantilizado. Como um computador que recebe um upgrade ou um carro “envenenado” por acessórios. Nesta metamorfose, a mulher branca reafirma sobre si o papel de mercadoria que satisfaz o anseio consumista dos olhos masculinos.
Em sua contradição, porém, tal fenômeno estético pode nos fazer pensar, ao refletir também, a busca psicossocial das mulheres por uma completude feminina, completude negada desde o surgimento do patriarcado e que relegou as mulheres negras e brancas uma fragmentação de sua humanidade. Lógico que esta completude estética é artificial e é o reflexo do desenvolvimento histórico das necessidades que impõem o capital, mas em seus conflitos e contradições, ela também pode ser capaz de dinamizar saltos qualitativos no campo teórico e ideológico do feminismo, pois “nada é mais dialético do que o movimento real, o complexo movimento do mundo e do pensamento, numa síntese dinâmica, ação recíproca, a negação, a contradição e o dinamismo, à qual a lógica estática não atribui senão valor negativo, mas a consciência dialética transforma-a em elemento ativo e fecundo, sem o qual não há desenvolvimento nem vida”².

Sueli Carneiro
Antes da nossa exaltação final, novamente citaremos um trecho do artigo "Enegrecer o Feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero",de Sueli Carneiro, para ilustrarmos com as devidas palavras a busca por um feminismo brasileiro unificado:

"O poeta negro Aimé Cesaire disse que 'as duas maneiras de perder-se são: por segregação, sendo enquadrado na particularidade, ou por diluição no universal'. A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta."
Viva o movimento Feminista 
Texto: Ana Clara Marques e Patrick Monteiro

(Este texto faz parte do estudo "Por um feminismo brasileiro amplo e não fragmentado". Para entender todo o contexto desta postagem leiam também "A difícil condição sexual da Mulher Negra na África do Sul, Haiti e Brasil ”, "O que as 'blogueiras feminista' deveriam aprender com os 'blogueiros feministas'?” e "Os privilégios de ser uma mulher branca")
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¹- A palavra UTOPIA foi utilizada aqui não em seu sentido etmológico ou de senso comum, mas num sentido amplo de capacidade humana em imaginar a quebra de um paradigma ou a criação de possibilidades para uma ruptura como todo e qualquer imobilismo social.
²-Nós escolhemos o trecho de A Idade da Razão, de Sartre, como a melhor definição do que acreditamos ser o conceito vivo e revolucionário conhecidamente chamado por DIALÉTICA, a fim de expressarmos a influência do feminismo negro dentro de nossa linha ideológica.

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