Maria – Iludida.
Em alguns momentos,...
nós paramos pra pensar o que devemos fazer a seguir: se iremos deixar tudo de lado, ou se iremos nos envolver. Eu escolhi a segunda opção, peguei as botas que ganhei de um amigo metaleiro; olhei-me uma ultima vez no espelho e nele, vi o que há muito tempo tinha reprimido – vi atitude.
“Por quanto tempo você acha que pode se esconder atrás de seus muros? Por quanto tempo, você acha que vai virar para o lado e tudo vai ser continuar funcionando?”
Minha mãe estava na cozinha, lavando a louça da janta, numa pia de metal, a qual ela mantinha reluzente como um lamina de aço, pronta pra próxima batalha; olhei a imagem do Senhor na parede da sala, era a mesma, olhos azuis, pele branca, e cara de coitado, com sangue para lavar nosso sofrimento; isso me lembrou um amigo, que certa vez disse: “vivemos para nos redimir de nosso pecado é a nossa peleja, porque do outro lado, existe a salvação”, na época, eu havia me enchido de esperança, isso explicava tudo até aquele momento, “se meus pais brigavam, é porque ainda não amavam um ao outro como a si mesmos, se existia violência, é porque o diabo estava atrás de cada estupro, de cada adultério, a fraqueza humana era o vicio do pecador, incentivado pelo chifrudo”. O tempo passou, com o tempo, comecei a duvidar, comecei a querer saber se existia prova da salvação, “quem voltou pra dizer alguma coisa do além, só ele, Cristo? Mas ele foi só um, por que podia ter tanta certeza?”. Com o tempo, as coisas mudaram, comecei a perceber que me sentia culpado todos os dias que acordava, que comia, que sentia vontade de carne, comecei a perceber que sentia-me culpado por tudo e comecei a desejar logo a salvação, mas aí percebi: “quanto mais queria a salvação, mas a morte me queria”. Então, decidir que não queria mais cultuar a morte, queria viver a vida enquanto vivo, “que me vale viver a vida como morto?”
Meu pai ganhava dinheiro de um jeito ou de outro, assim sustentava agente, mas quando enchia a cara, queria cantar de galo lá em casa. Quando o bicho cantava, era certo que ia ter porrada. Mas quando conversava comigo, dizia, “meu filho, estude, não vá engravidar qualquer uma por aí não, igual eu fiz com a tua mãe, que não era mulher pra casar. Arruma uma mulher que saiba cuidar da casa, que respeite você porque você tem direitos, você nasceu macho. Quando comer uma branca, você vai ver o que é o paraíso. Elas são como flores. Come uma e vê se casa com ela. Porque pra mim, cá entre nós, a maldita da Eva era uma baita de uma negona, por isso o pecado; por isso pagamos pra viver nesse mundo miserável.” Ele me dava nojo, tinha vergonha de ser filho dele. Mas qualquer menção de contrariá-lo, era sinônimo de porrada na cara.
Eu abri a porta de casa, olhe para dentro, da sala, dava pra ver minha mãe enxugando os pratos do outro lado. Olhei para ela, com pena. Eu não voltaria a vê-la. Ela sabia de tudo, mas não me queria. Dizia que eu era errado. Dizia que ela nasceu mulher, nasceu para aquilo mesmo, “ia fazer o quê?”, dizia ela, “mandar teu pai pra cozinha, o imprestável não presta nem pra arrumar um emprego de carteira, quem dirá comandar um fogão elétrico!”. Quando lembrava daquelas palavras, pensava: “será que ela é uma inimiga?, ou ela é apenas mais uma vítima? Mas se ela defende o macho, como pode ser vítima?” Eu não sabia responder, mas sabia quem eram os inimigos, eram os machos. E eu não queria ser macho.
Eu fui andando até a parada de ônibus, que ficava a uns quinze minutos da minha casa. Andei por entre ruas de barro, argila, com casas em reforma, com tijolos de um lado e do outro; algumas tinham calçadas, outras não. As pessoas me olhavam nas ruas com respeito, eu não era um menino de má conduta alí, não na minha rua, no meu bairro. Eu acenava para cada dona de casa acorrentada em seus muros; eu acenava para cada grupo de garotos, que me um dia foram amigos, mas que hoje, não pensavam em outra coisa a não ser em futebol, mulheres-objeto – era assim que eu chamava as mulheres que trabalhavam nos mesmos lugares que eu, afinal, eu sabia que também era um objeto, um produto de consumo para aquela raça maldita - , e todas as outras merdas que pensavam os jovens pobres de favelas. A bronca é que a galera pensa que na favela só tem bandido. E num tem não, a maioria quer ser tão pai de família, quanto qualquer branco doutor que tem por aí; a maioria, as mulheres também, querem ser tão virtuosas como qualquer figurona de novela e do mundo da fama. Acho que os bandidos só são bandidos porque não nasceram ricos. “Mas num tem também os ricos bandidos?” Uma amiga, amigo quer dizer, dizia que na verdade, o bandido só é bandido porque não aceita aquela ideia de viver de acordo com as regras. As vezes eu acreditava nisso também. “Tipo, se você tem que trabalhar para se dar bem na vida, mas tem que suar, porque seus pais, são filhos de gente que veio com educação lá da senzala, enquanto que os filhos dos bonitinhos que me procuram todos os dias tem pais que lhe dão as chaves do carro na porta da faculdade, que lhe garantem escolas pagas, casa própria, e nenhuma bronca com grana, então, porque os filhos de negrinho aí tem que viver do jeito que eles querem? Não são eles quem governam? As empresas num são tudo deles? Num vejo muito negro por aí dono de indústria, empresa e tal.” Eu confesso que as vezes eu concordava, mas concordar de mais também ia me levar pro caminho da bandidagem. E u num queria ser preso. Tinha medo. O pior é que minha escolha também me dava medo. Se não apanhava do macho em casa, vez por outra levava porrada de macho na rua. Foi aí que eu vi que o mundo é do macho mesmo. São eles que fizeram as guerras, a escravidão e tudo mais. “Se as mulheres tinham que ficar em casa desde que cu é cú, então, quem ia pra guerra? Quem queria dominar mais e mais, quem queria ter o pau maior?” O mundo é dos machos e passei muito tempo sacar direito isso.
Então, fui pra parada combinada, desci no meu ponto. Tudo ia mudar dalí em diante, minha vida seria outra. Eu encontrei um cara que era tudo. O cara me prometeu, depois de uma noite de prazer comigo, que juro que da ultima vez, não cobrei, iria me assumir e eu agente ia sair daqui dessa merda. Bairro pobre, não é lugar pra se viver, nem perto de bairro de gente rica. Agente iria pra outro lugar, agente iria pra outro país. Eu não sabia bem qual, mas ele me prometeu que me contaria tudo essa noite.
Duas e meia da manhã, um carro da polícia aparece, ele se aproxima e um “velho amigo” no banco do motorista fala: “Maria, negona, entra aí atrás, hoje te pago dobrado”. Eu disse que não podia, aí o amigo dele falou: “Tu ‘ta fudido mesmo cara, tu num ‘ta pegando nem veado”. O cara ficou puto e desceu do carro, sem mais nem menos, puxou o cassetete, “afinal, ele tinha que mostrar quem mandava alí”. Mas não era a primeira vez, eu chutei o ovo dele com o coturno que meu amigo me dera. O cara arriou no chão, o amigo dele saiu do carro. Eu peguei o cano do que ‘tava deitado e não pensei duas vezes, eu ia fugir dalí, nunca mais aqueles caras iam me comer de graça, nunca mais iam me tratar como cachorro, como objeto, como tratam as mulheres deles em casa. Eu peguei o cano e atirei duas vezes, depois virei e atirei no mesmo canto onde eu chutei o cara que ainda gemia de dor deitado, nunca mais ele iria fuder com ninguém. Quando olhei pra rua, o carro escuro se aproximava, era um polo preto. A placa confirmava, era o meu namorado, meu príncipe encantado. Ele abriu o vidro, olhou pra mim com aquele cabelo bom, como qualquer príncipe tem, e arregalou os olhos quando viu os policiais na rua. Ele não pensou duas vezes, o carro bateu em mim, não foi um atropelamento mesmo, mas bateu de um jeito que eu não consegui levantar, um pé teria sido estraçalhado se não fosse o coturno. Mas a perna quebrou, o maldito ainda disse: “travesti filho da puta”.
Foi nesse dia que descobri que Príncipes Encantados também não existem, descobri dolorosamente, que essas ideias são só mais uma forma de enganar, pra manter o poder. Mas foi tarde mais. Eu não tive opções.
Olhei o revolver na mão, e fiz o que tinha fazer...
Texto: Gabriel Brito
GRIF MAÇÃS PODRES
Um comentário:
Estória forte, realidade doida.
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