16 de mar. de 2011

A Declaração dos Direitos das Mulheres e das Cidadãs e Concepção de Liberdade no Patriarcado

Olympe de Gouges
Nós do Blog MAÇÃS PODRES fechamos a semana do DIA MUNDIAL DE LUTA CONTRA O MACHISMO divulgando a Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã (desconhecida por muitas feministas e nem mesmo citada na maioria dos livros didáticos de história do ensino básico brasileiro) junto uma reflexão sobre a condição da liberdade dentro filosofia humanista clássica que instituiu as bases sociais do mundo atual.
“Apesar do sistema de classes sexuais ter-se originado em condições biológicas básicas, isso não garante que, uma vez tendo sido banidas as bases biológicas de sua opressão, as mulheres serão livres”.

S. Firestone, Dialética do Sexo - 1976

A Declaração dos Direitos dos Direitos do Homem ou da Humanidade?
Segundo a filosofia humanista clássica, nenhum ser humano pertence a um dono legal e nem esta preso a um território específico, como ocorria nas sociedades escravocratas ou no regime feudal europeu, porém se todas nós nascemos livres e proprietárias de nosso próprio corpo seríamos nós mulheres realmente livres?
A idéia que temos de “liberdade” se fundamenta em princípios nada “universais”. A concepção “moderna” de liberdade esta amplamente ligada a moral da sociedade patriarcal capitalista e serve para legitimar as estruturas de opressão/dependência econômica.
Uma forma de se comprovar a concepção descrita acima é quando analisamos que o sinônimo que define a idéia universal de “humanidade” refere-se ao gênero masculino, ou seja, a palavra “homem”, em termos tradicionalmente patriarcais, “aquele único que por direto tinha o poder de vida e morte sobre os membros de sua família/dependentes”.
 Esta representação está explicitamente presente na definição burguesa que se encontra presente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, já em seu nome e artigo inicial:
Artigo 1º-
Os homens nascem e são livres e iguais em direitos.
As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum.


Utilitarismo do patriarcado econômico
A “utilidade” acima citada para justificar “as distinções sociais” se baseia na concepção filosófica conhecida como o utilitarismo.
O utilitarismo é uma doutrina filosófica e normativa que tem por forma objetiva otimizar o “bem-estar social”, avaliando uma ação individual ou regra social unicamente por sua funcionalidade e suas consequências. Assim como em toda cultura ocidental, na base dos princípios a filosofia humanista clássica, a imagem das mulheres é produto histórico das relações sociais de interdependência entre os sexos e isso gerou uma redução consciente e idealizada da imagem da mulher quando comparada da imagem masculina. Sua aplicação refletia as restrições sociais que se referiam aos papeis sociais da maternidade e do casamento, ou seja, que determinavam o espaço privado como “espaço natural” das mulheres e sua função social como a reprodução biológica e a educação familiar. Qualquer desvio deste caminho acarretaria em prejuízo nada “útil” para o bem estar coletivo (das intituições machistas).
Foi contra esta restrição e seus consequentes impedimentos práticos que, durante a Revolução Francesa, Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze, escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 1791, antes de ser guilhotinada por seus ex-companheiros de batalha, graças suas perigosas palavras e posicionamentos “nada úteis” para o patriacado burguês (a declaração está transcrita nas fotos ao lado).
Objetivar as pessoas para restringir as liberdades
Objetivar as coisas é dar a elas um caráter definido de uso e utilidade. No caso da moral burguesa, um caráter de posse e de propriedade privada. E isso inclui as mulheres. Tanto que no segundo artigo, a lógica das palavras que constitui os direitos do homem possuem na seqüência proposta do primeiro artigo o caráter de “associação política para a conservação dos direitos naturais que garantem a liberdade e propriedade ao homem e só então culminar na idéia de resistência contra a opressão”:
Artigo 2º-
O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade,
a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

No nascedouro do capitalismo político, “os direitos naturais” são definidos como “liberdade”. Todavia, a garantia da “liberdade” pessoal está condicionada ao poder de negociação que cada indivíduo tenha para a manutenção de sua sobrevivência. Assim, cada pessoa é dona de seu corpo, porém é também responsável por sua própria sobrevivência. E como os direitos da declaração do homem e do cidadão preservavam a propriedade, instaurava-se a naturalização institucional e fundamental da sociedade capitalista: a desigualdade econômica.
Na evolução econômica deste conceito, percebemos que a garantia da liberdade dos proprietários é diretamente proporcional a exploração do trabalho alheio e da dominação da liberdade dos trabalhadores, ou seja, “a liberdade de uma pessoa só vai a até os limites da liberdade de outro individuo” e quem fosse capaz de submeter mais pessoas a dominação teria então condições de garantir uma maior liberdade.
O economista clássico David Ricardo, definiu isso de uma forma mais, digamos, objetiva:
"o preço natural do trabalho
depende do preço do alimento, necessidade
e conveniências necessárias a manutenção
do trabalhador e sua família"
assim, o preço a ser pago pelo empregador ao empregado, estipula que o valor do salário sirva apenas para a manutenção de sua sobrevivência, lhe permitindo "viver e perpetuar a raça"¹.
Analisando a liberdade capitalista
Não precisamos analisar o primeiro motivo, já que morto o empregado não terá função ao empregador. Mas é a segunda função do salário que nos é conveniente analisar.
Como os diferentes tipos de trabalho exigem diferentes níveis de educação e qualificação, os salários a serem pagos aos empregados, devem ser distintos entre as distintas categorias de trabalhadores, entre eles (homens e mulheres). A lógica da desigualdade salarial é necessária para produzir uma variedade de força de trabalho e garantir diferentes níveis de liberdade através da atuação individual em trabalhos produtivos ou reprodutivos. Não é a toa que para David Ricardo, a "família" vem a reboque do trabalhador e seria fator fundamental para determinar o valor do salário.
Garantir “as conveniências necessárias” da família, assim como do trabalhador, é garantir a manutenção das relações sociais de poder capitalista. Pois é na procriação familiar que se garante a produção da principal mercadoria do capitalismo: os seres humanos. Isso nos leva a uma conclusão bem óbvia: dentro do valor que determinaria o preço do trabalho negociado por um trabalhador, ou seja o preço de sua liberdade/garantia de sobrevivência, consta também uma parte que seria equivalente para o sustento da mulher, já que esta garante a liberdade daquele homem, que no momento do lar, estaria livre dos trabalhos doméstico. Dependente do homem para sobreviver, a mulher garante parte da liberdade masculina, do mesmo modo que o trabalhador garante a liberdade do empregador ao depender de um salário. O significado simbólico da universalização dos conceitos “homem” e “humanidade” dentro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão reduz tudo que não for masculino/heterossexual (e branco, diga-se de passagem) a uma função objeto social “útil”. Assim, apesar da propriedade legal sobre si mesmo, a chave da liberdade burguesa reside nas posses econômicas.
É no princípio da independência financeira que se encontra o preso conceito de liberdade que conhecemos. Pois todo aquele ser humano que não for dono de uma propriedade, na verdade, não possui seu próprio corpo, se encontraria obrigado a ceder a outrem parte do que naturalmente lhe pertence, devido as suas condições econômicas. Sem ter posse de nenhum meio de produção ou substancial acúmulo de capital – os seres humanos livres tornaram-se forçados a vender parte de sua propriedade/liberdade como uma mercadoria, sob a forma da força física, na busca de seu sustento e sobrevivência, reafirmando a realidade histórica da opressão por estender a outros o poder de posse sobre o corpo alheio em nome da garantia de uma duvidosa liberdade.

As conseqüências da liberdade capitalista para as mulheres
Sem muito esforço de procura, qualquer mulher facilmente encontrará no Google textos que explicitam o desgosto, de certas mulheres, como a estadunidense Carrie L. Lukas, com as conquistas do movimento feminista.
Entre os argumentos por elas usados existe o que diz que “atualmente as mulheres são muito mais exploradas, pois possuem uma tripla jornada de trabalho” e que, “antes das ações do movimento feminista, as mulheres (logicamente brancas e de classe média) tinha apenas que cuidar dos afazeres domésticos (marido e filhos), mas graças ao feminismo, hoje elas também são obrigadas a exercerem atividades externas (trabalho assalariado)”. O que aumentou nossa exploração.
Carrie L. Lukas
No fundo estas mulheres conservadoras reclamam da precarização econômica em que os homens médios se encontram, pois, neste aspecto, sua atual condição é mais explorada, já que o desenvolvimento capitalista obrigou parte das mulheres da classe média a saírem para o mercado de trabalho, garantindo tanto a liberdade burguesa de seu patrão quanto a de seus maridos quando estas se veem obrigadas a exercer as ocupações domésticas (que muitas vezes é a de “administradoras do lar”, já que muitas possuem empregadas domésticas, para garantirem a manutenção de parte de sua liberdade burguesa) e educacionais determinadas por sua função social feminina. Entretanto, esta não é uma conseqüência pura e simples das ações feministas, mas uma realidade inerente a estrutura de exploração capitalista.
Assim como no capitalismo, a relação das liberdades de gênero é diretamente proporcional a ao poder que um homem tem em submeter uma mulher ao seu papel social feminino. Até porque o capitalismo é a atual expressão econômica do patriarcado, ou seja, quanto mais uma fêmea de nossa espécie estiver presa aos padrões e papeis sociais de gênero, tanto mais ela ira garantir a liberdade dos homens com as quais ela se relaciona (seja o marido ou o patrão). E deste modo, culpar o feminismo significa dizer que quanto menos feminista uma mulher for, mais ela estará sendo útil para a sociedade que determina como princípio  básico da liberdade humana o controle sobre as horas da vida alheia. Em especial, a vida das mulheres.

Viva o Movimento Feminista.
Texto: Ana Clara Marques e Patrick Monteiro
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¹ - Citado por HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Rio, Zahar, 19729 p. 212.

Um comentário:

Arttemia disse...

Estou lendo o livro Backlash num trecho que justamente discute mulheres da direita fundamentalista cristã americana que pregam a submissão das outras mulheres á autoridade do marido/pastor, a volta para o lar e a extinção de creches e programas assistencialistas a mães solteiras, a criminalização do aborto e etc. E todas essas mulheres são brancas, casadas e que não pregam o que dizem pois frequentaram universidade e trabalham ativamente fora do lar pelas causas conservadoras. Enquanto se concentram em culpar o feminismo por tudo, o verdadeiro motivo dos problemas pelo qual a classe média está em decadência passa em branco: as políticas de direita iniciadas no governo Reagan que aumentaram a distancia entre pobres e ricos e que agora está penalizando também e muito, a classe média. Colocar essas mulheres á frente do conservadorismo ajuda e muito a causa capitalista patriarcal, pois elas reafirmam a demonização do feminismo ao mesmo tempo em que colaboram para que os homens se sintam mais vitimizados pela crise, mas direcionando seu ódio contra as mulheres e não contra quem os coloca na situação de explorados, ao mesmo tempo em que contribui para que o movimento feminista de desvalorize aos olhos das próprias mulheres, motivo e causa do feminismo existir...