Primeiro queria falar da presunção de escrever sobre algo em
andamento. Quem sou? Não é relevante. Não temos rosto, isso basta. Como tal,
fluídos como a diferença, somos várixs. Por isso, não tenho pretensão de
mostrar nada alem de uma opinião. De resto, pode ser que seja uma reflexão
útil, ou que seja, então, base para negação – que seja!
Queria falar da importância de sairmos da representatividade;
da delegação; da necessidade de liderança. Em todos lugares, campos e esferas.
O modelo do “estado de direito” no qual se construiu uma
“democracia representativa viável e racional” à esteira da economia d’o
capital, parece fluir para todos os lados (política institucional, militância, academia
etc.) contaminando tudo e inibindo outros ideais e valores. Por isso, acho que
precisamos parar um pouco e refletir sobre o curso das águas: será que não
estamos chegando ao fim do rio?
A ocupação do cais José Estelita, o que tem a ver com isso
tudo? É, de fato, prática (em relação à “teoria e prática”) para alguns ou
apenas um “imaginário” em síntese que pode ecoar para um futuro como um sonho
latente?
O som de Keny Arkana, em “V de verdades” diz, “[...] um
momento contém a eternidade...” O Estelita é um destes momentos que contém a
eternidade?
Acredito que sim... mas não somente.
1 – Do imaginário às balas, “das armas da crítica à crítica
das armas...” (Marx).
Estive
alguns dias no Estelita. O dia mais importante, para mim, ocorreu quase uma
semana antes da reintegração de posse. No dia, na companhia de uma companheira
que compartilha das mesmas angústias, temores e anseios sociais, assistimos
três pessoas apresentarem situações, idéias, pensamentos. Dxs três, um (a) me
chamou mais atenção, era uma mulher de classe econômica marginal; de origem
étnica mista (não branca – colonizador; não negra, ou índia – colonizados), mas
não por isso menos colonizada; e designada humanamente como mulher.
As palavras
dela me chamaram mais a atenção por quê? Tínhamos dois/duas acadêmicxs também e
a mulher não estava nesse padrão? Oras, dois/duas intelectuais, sendo um, um professor
– um intelectual!
Primeiro,
ela me lembrou de duas pessoas; Marx e Spivak. Marx porque trouxe a crítica das
armas ao invés das armas da crítica. Como assim? Bem, o professor trouxe a
filosofia e o saber acadêmicos. Mostrou para uma platéia mista, mas em sua
maioria composta por jovens, o poder do imaginário; a diferença dos conceitos
de signo, signo e simbólico etc. Nos
mostrou o saber acadêmico, na “ágora” do Estelita, aproximando uma luz sobre o
coração dos ocupantes. Mostrando-lhes que a história continua, está sendo
construída e tudo aquilo ali era, se entendi algo, a criação de uma
representação que iria além da gente (ocupantes e militantes).
Ela, por sua vez, falou dos tiros, do
enfrentamento, de um conflito de resistência contra as forças do Estado; do
sangue nas paredes de sua favela; da violência; da força para dizer, diante da
miséria, que enfrentaria a bala de novo, e que, se de novo, fosso necessário,
outro representante da força do Estado, teria resposta à altura das balas que
direcionava contra sua favela. Eis a crítica das armas, há tempos esquecida.
Lembrou-me
Spivak, também, pelo seguinte: o Estelita criou a possibilidade de que o espaço
para que o subalterno falasse, existisse. E assim se fez. A mediação de um
saber acadêmico em nada acrescentaria à experiência de vida dessa mulher que
vos falo. Tal experiência nos ensina muito, mas muito mais que muito saber que
tem por aí, de Marx à Foucault.
Como Raul
Seixas, no “auge da minha agonia...” participei do debate. Mas sem que a
necessidade da medição de pau estivesse presente; sem a violência simbólica de
discursos (testosterona) que precisam ser melhores, vencerem debates; mas sim,
tentando falar das possibilidades que o Estelita trazia e da necessidade de
pensar em como aquele espaço poderia ser heterogêneo; como o sangue e as armas
deveriam ser combatidos e como o discurso mais real – o da mulher subalterna –
representava um mundo real que grita, tal como ela gritou, para outro mundo
possível, outro mundo ansiado – tal como eu e a companheira que comigo estava
também ansiávamos – e, talvez um mundo diferente do que algumas pessoas ali
estavam pensando...
2 - Classe média e direitos urbanos – moradias populares (mas
não somente) – higienização.
Pergunto-me
sobre o princípio da diferença, da identidade. Será que o movimento precisaria
ser homogêneo para contemplar a “vontade geral”? Mas a vontade geral não
pressupõe, justamente, a sua inviabilidade numa sociedade tão multifacetada
como a nossa? Assim sendo, poderíamos pensar, então, no Estelita como
necessariamente “de classe média” e, por isso, defendê-lo? Acredito que não.
Como assim?
A marca da nossa sociedade é a diferença; é a constituição de múltiplas
identidades. Desse modo, penso que a heterogeneidade se apresenta como um fato
inegável e, curiosamente, não negativo. Pelo contrário, acho que a democracia
abarca isso, ou pelo menos deveria, não? Em outras palavras: o Estelita não
deve ser encarado como monocromático e, tampouco, deve ser “apenas da classe
média”. Se tem classe média, “nossa, que bom!”, mas não pode ser resumir aos
interesses da classe média. Tem que ser um edifício com vários cômodos e todos,
tem de estar interligados de algum modo.
Moradias
populares devem fazer parte da pauta de reivindicação sim. Porém, não apenas
“moradias populares” e basta. A mulher que representava um movimento (que ainda
não revelei) era do “Dhuzati” e representava o Conjunto Habitacional do
Cordeiro. Ela contou sobre a experiência de que o seu conjunto habitacional (ou
o que ela mora) é um aglomerado de moradias de várias famílias. Tais famílias,
por sua vez, são, muitas vezes, de comunidades diferentes e, por isso, além do
abandono do Estado, há a potencia de rivalidades que surgem nestes locais
(distantes dos condomínios e espaços sociais da classe média) por, justamente,
se constituírem enquanto locais em que o “Estado” abandona.
A
higienização, argumento trazido por outrx companheirx que falou e que milita
exemplarmente, se constitui, paradoxalmente (ou ardilosamente), justamente, na
criação das moradias. Oras! O que deveria ser solução: o que a sociedade é
convidada a dizer, “nossa! O governo vai construir mais de mil moradias
populares até o fim do mandato vigente” é, por outro lado, não a solução, mas a
limpeza étnica; o afastamento de uma população abandonada ao “Estado de
Natureza” para viver tal estado em outro lugar, se possível distante das ruas e
do espaço cultural do Recife Antigo; das áreas de lazer disponíveis as classes
mais abastadas; aos/ as cidadxs de direito.
Nesse
sentido, as reivindicações da classe média precisam ser reavaliadas; assim como
as reivindicações da classe pobre, precisam ser problematizadas com maior
sobriedade. Mas como fazer isso se o governo local já vendeu em leilão
denunciado como deslegitimo a propriedade da terra “comunal”, para a iniciativa
privada. Ainda por cima, dentro do modelo representativo de democracia em que
aceitamos viver? Bem, isto me parece bem sintomático.
3 – Democracia representativa-patológica e as Jornadas de
Junho.
Concordo com um certo professor de política que afirmou que o mês de junho de 2013 trouxe outro panorama para o Brasil. Concordo. Penso, por outro lado, mas nem por isso contrariamente, que as manifestações de junho representam, básica e obviamente, a insatisfação da sociedade para com o Estado. Esta insatisfação pode ser com a gestão atual ou com a sucessão de gestões do Estado. Porém, penso que há mais nisso do que “insatisfação”.
Acredito no
que chamo de “cabeça a cabeça”, trocar idéia entre pessoas, sem muros,
barreiras. Por isso, acho que nosso panorama atual é positivo nesse sentido,
pois permite essa abertura. Contudo, ainda existe um conflito entre o “passado
e o presente”, o “presente e o futuro” e, mais factível – entre gerações. Isso
não é de todo mal, é positivo. Pois vejo que há pessoas novas, grande parcela
de jovens; certa parcela de gerações mais velhas; que podem pensar o novo,
pessoas que podem fazer diferente.
De boa,
foda-se o pessimismo niilista. Não to preocupado em dialogo com posições que
mesmo não posicionadas, permitem com que uma estrutura já estruturada continue
estruturante; em poucas palavras, não to afim de convencer “realistas” de que
podemos mudar. Eterno retorno é uma logicização não condizente com uma
realidade que temos a nossa frente, palco para a contingência, estrada para a ação.
O que me
parece que temos diante de nós, pós 2013, é a possibilidade de transformação de
nosso cenário político. Este dado me parece tão seguramente correto que posso
indicar, em contra-partida, as tentativas de quem está no poder de, justamente,
se apropriar desse “discurso” de “participação”, “reforma política” etc., em
novas propagandas partidárias que soam como música para ouvidos de uma nova
geração de militantes e ativistas (aqui em Recife, até onde me lembro os
partidos de esquerda estão nessa; enquanto a direita está tentando ainda falar
de moral da família e mercado, como Thatcher na década de 1970).
Eae,
acreditamos neles mais uma vez?
4 – Democracia participativa e pluralidades – ocupeestelita.
Este texto
já ta ficando muito longo. Acabemos.
Hoje (ontem,
já que entrei na madrugada) tive uma ótima conversa com companheirxs (se
tiverem paciência de ler, elxs saberão quem são e quem influenciou isso ou
aquilo nesta parte). Falou-se da antiga atuação LGBT, quer dizer, das formas de
militância verticais e do modelo que já não funciona bem, pois pelo menos aqui
em Recife, se falou de certa falta de mobilização destes grupos.
Eu
questionei a forma de atuação geral da democracia que, como já se tem chamado
(acho que Boa Ventura) de modelo de democracia patológica. Esta forma de
democracia, a representativa, como falei no começo deste texto, e também quando
participei do diálogo no Estelita, parece reverberar nas formas de organização
de alguns movimentos sociais (maioria). Oras, nem de forma geral a democracia
tem dado conta, imagine em questões mais pontuais?
Em um texto
zapatista, o qual estudei com um grupo fodástico – o Curupiras (grupo de
estudos sobre póscolonialidades, de forma geral, daqui do Recife) – traz a
experiência zapatista de organização política – democrática -, horizontal,
direta, participativa, em toda a sua pluralidade (a atuação das mulheres, por
exemplo em meio a militância) e a crítica ao posicionamento dos (nós) acadêmicos
que teorizam e teorizam... e teorizam. Ou seja, que não “agem”, pois teoria
para teóricos não deixa de ser teoria; a prática não é isenta de teoria, mas é
feita pelo conjunto de ação e prática; a teoria, por outro lado, pode ser
exercida na prática ao invés de ser um princípio de diferenciação entre
“teóricos” (pensadorxs e criadorxs de conceitos) e “os outros” (penso aqui na
analise de Spivak sobre o posicionamento de intelectuais, como Foucault e
Deleuzze, e da analise que eles fazem sobre a mesma questão em relação a
prática de trabalhadores e dos intelectuais).
Quero dizer,
com tudo isso, que a academia tem que sair dos muros de proteção e culto ao
saber, tem que está nas ruas, aprendendo com outros saberes. Quero dizer
também, que a democracia não deve ser confinada a analises sociológicas
academicistas, portanto. Ela tem de ser estudada na prática, em seu exercício e
no diálogo. Rosa Luxemburgo já dizia, por exemplo, que “... o povo só vai
aprender a usar o “poder” (se não me engano) na medida em que USA O PODER...”.
Os
movimentos, a exemplo do LGBT, representam aqui, um componente de uma
pluralidade de grupos, de interesses, de sujeitos. Consequentemente, a
democracia deve abarcar os interesses dos grupos dentro de um conjunto de
referencias gerais que norteiem os valores democráticos.
O que isso
tem a ver com o ocupeestelita?
Como disse,
tenho uma opinião sobre o assunto, não a verdade e posso, por isso, estar
errado. Mas confesso que não to muito preocupado não. Pra mim, o que vejo é: a
ocupação não está longe do que vivemos ano passado, caminhando pelas ruas do
Brasil todo, reivindicando reformas políticas. É uma continuação. Se ligo um
fato ao outro, é porque vejo parte das pessoas, ou suponho, que estavam nas
ruas ano passado, se reunindo para resistir as armas do Estado na
desapropriação este ano no Estelita.
A
pluralidade que me refiro, que parece está saindo aqui do raciocínio, na
verdade, é manifestada no conjunto de interesses heterogêneos que estão em cada
sujeito que estava no Estelita. Além disso, o conjunto que se formou no
Estelita, tem o potencial de, no mínimo, simbolizar a decadência da democracia
representativa partidária. Isto é, me parece que o Estelita é parte de um
momento histórico em que pessoas estão se levantando e contestando um modelo de
organização político-econômica que há décadas vem se demonstrando como incapaz
de dar conta desta organização.
P.S.: Não
estou querendo representar ninguém, nem ser representante de outras pessoas a
margem do sistema. O que quero aqui é propagar idéias a partir dos diálogos
reais ocorridos nas ultimas semanas na cidade de Recife, no Estado de
Pernambuco, em junho de 2014 – um ano depois dos movimentos que abalaram o
Brasil e o mundo.
Relato: Gabriel Brito.