9 de jan. de 2009

CINDERELAS NEGRAS: O Complexo de Gata Borralheira

CINDERELAS NEGRAS:
Panelas pra ensinar o universo do lar? Pipa pra mostrar que o homem pode voar? No conto de fadas eu não fui personagem, no livro da escola eu não vi a minha imagem, já na infância o discurso foi transmitido, condições pra sustentar o tal capitalismo
Amandla (trecho da letra: bonecas brancas pra meninas pretas?).

Ao assistir esse vídeo, curto e tão longo ao mesmo tempo (no sentido da reflexão que ele nos traz), apontaremos a cegueira racista e machista que oprime homens e mulheres e de outro modo (nem menos e nem mais pior) homens e mulheres negras, desde sua infância.A cegueira dessa sociedade desigual, utiliza-se de valores que impõe o que é “ser mulher”, o que é “ser bela”, apoiadas em ideologias pra nos manter nas correntes quase invisíveis.

O Complexo de Gata Borralheira
“Quase” invisíveis porque temos a sensibilidade ofuscada, impedindo de enxergar a violência da construção da submissão do corpo e da mente, em prol da afirmação de uma suposta superioridade cristã, branca e masculina.Nesse vídeo, crianças negras (meninos e meninas) vinculam de forma unânime a imagem da boneca branca como “a mais bonita”. Acompanhada ainda de uma representação do que é “ser boa”. As crianças entrevistadas expressam com muita ingenuidade o mito da beleza ideal. Essa representação é nada mais nada menos que um padrão de beleza européia, alimentada de forma violenta nos países que se desenvolveram com a escravidão, para uma padronização étnica e racial, fundamentado em valores religiosos e pseudo-científicos, na tentativa de provar uma inferioridade racial do povo africano.
Esses valores socialmente construídos originam-se nas idéias racistas que possibilitaram introduzir a cultura do embranquecimento nas Américas.No Brasil, elas já foram instrumentalizadas na política de planejamento familiar, que objetivava o controle do corpo da mulher negra. Além de outras políticas descaradamente racistas. A idéia era de sumir com o povo negro para negando novamente sua condição humana, na perspectiva de higienizar o país. Isso mesmo. Clarear o povo com a miscigenação até que um dia fosse extinto o sangue negro.Além das políticas de cunho genocida do Estado, as novelas e os contos de fadas vêm assumindo o papel de confirmar essas idéias de embranquecimento, de imposição do padrão de beleza e de comportamento para os povos não-brancos. De modo que as mulheres negras não se sintam representadas em seus papéis as consequências serão expressas na sua saúde física-mental; a falta de auto-estima e a auto-confiança.
“O pessoal é político!” Ângela Davis
Vimos essa reprodução ideológica no conto da gata borralheira, onde a representação dessa personagem é vinculada à mulher negra brasileira. Para a psicóloga negra Gislene A. Santos in “Mulher Negra, Homem Branco” compreender a personagem é entender a opressão vivida pela mulher negra.
A autora descreve em metáfora baseada na experiência da vida de uma amiga negra que se apaixonou por um branco inglês que tinha um certo fetiche por brasileiras. Enquanto estudava na Inglaterra e após o término do namoro ela ficou mal e desabafou a raiva que sentia por ter sido deixada enquanto ele assumia um relacionamento com uma outra brasileira, negra, miscigenada de pele mais clara.
A gata borralheira era branca, pobre, órfã e era tratada como uma escrava doméstica. Descansava ao lado do fogão e vivia suja. Essa orfandade é decifrada pela autora como uma ausência de cultura (africana), e no decorrer da história ela sofre mutilações em seu corpo/vestes/linguagem/comportamento para ser aceita e “salva” pelo príncipe encantado. Ele era branco e rico e foi seduzido com sua beleza, considerada exótica, pois não era uma princesa. Gata borralheira era uma escrava que se tornaria uma princesa ao casar-se com ele.Essa beleza é adquirida após um passe de mágica.
Metaforicamente, ela se transforma numa moça “limpa” e “bela”. Esse passe de mágica simboliza a higienização que levará a sua própria salvação. Realizando o sonho em que um homem branco mude sua situação de escrava para Cinderela. Daí pra frente, passa a viver feliz para todo o sempre.Ops! Feliz? Pra sempre??É minha gente... se lançar no consumismo exacerbado, afinar o nariz, alisar o cabelo, fazer lipo, plástica, enfim, se mutilar para se aproximar da beleza branca é a prova real da busca de um alcance de status, considerado pra muita gente, uma forma de alcançar a felicidade. Ou simplesmente também para conseguir emprego.Vide a situação de muitas de nossas amigas e parentes, que são proibidas de usar o cabelo crespo ou trançado em seus locais de trabalho.A mutilação pode ser vista como um excesso de claridade que a mídia e os conto de fadas nos impõe para que alcancemos a “boa aparência”. Ela cumpre a função de forçar a submissão feminina ao padrão de beleza, até mesmo pra sobreviver na sociedade da concorrência.
O desejo de salvação deixa subentendido como a necessidade de proteção, que dentre outras condições, se realiza no casamento, pra livrar-se do sofrimento da solidão, uma vez que a “mulata” não é a preferida pra casar. Nem pros homens brancos e nem pra maioria dos homens negros.Nota-se ainda que o passe de mágica da madrinha pode ser ilustrado como o dia de princesa, ou seja, o dia do casamento como a data mais importante da vida da borralheira que depois de tornar-se bela, aos olhos do príncipe, passou a ter a segurança e a “liberdade” que tanto ansiava.Diante disso, nos perguntamos o que significa essa mutilação para a mulher negra? Por que as revistas, novelas e a igreja nos ensinam a imitarmos a mulher branca? E o que significa essa imitação? Será uma forma manipulada para negar nossa negritude? Negar a negritude, significa se aproximar da “essência feminina”? Se aproximar ao máximo dessa essência é alguma tentativa de humanizar-se?Bom, sugiro que assistam ao vídeo novamente e reflitam seriamente nessas indagações.
Há muito tempo, o movimento negro (com a participação feminina) e o movimento de mulheres negras vêm denunciando o racismo vivenciado pelas brasileiras, pautando a consciência negra como estratégia de luta, além de posicionar-se criticamente ao matriarcado da miséria.
Mas viemos chamar atenção aqui também para a questão da dependência da mulher por um protetor, a busca de um homem de carteira assinada, de preferência de olhos azuis, para clarear as próximas gerações e trazer orgulho e “segurança” pra família a partir de um “sucesso” no casamento, preferencialmente, aprovado na igreja e no cartório.
O complexo de cinderela não é uma maldição alimentada somente pras brancas. O desejo de salvação também está impregnado nas mulheres negras e devido a situação de pobreza, ocorre uma grande frustração/depressão, porque o alcance desse padrão é muito caro.Numa combinação da opressão de gênero, raça e classe entendemos a necessidade de refletir a simbologia para descontruir tais valores e práticas que impossibilitam a real libertação das mulheres negras, que apesar de suas incansáveis lutas, ainda não se emanciparam dos valores brancos impregnados no processo de colonização mental, como é o caso do complexo de gata borralheira.
É de fundamental importância que a mulher negra volte a enxergar o reflexo da sua beleza e assim garantir a auto-estima que há séculos vem sendo negada. Assim como permitir a si mesma a exploração de suas potencias com autonomia. Já que, para transformar o externo, se faz necessário destruir o que foi construído dentro de nós, mulheres negras.
Temos que começar a ver as coisas bem escuras pra entender que o processo de dominação masculina se dá de maneira diferenciada para as mulheres negras e que a luta por uma nova mulher, exige uma solidariedade entre todas mulheres dispostas a desprender-se da condição de frágil e subalterna para a condição de independência e autonomia.
Assim como as mulheres negras também devem se organizar coletivamente também de forma autônoma não só pra denunciar o embranquecimento imposto à nossas filhas, irmãs, amigas, etc, que sofrem diariamente com essa negação da identidade, mas também a resistência cotidiano, de enfrentar esses valores da família burguesa, que naturalizam a “falta de competência” da mulher negra, sujeita a submissão nas relações de poder, seja com homens brancos ou negros, ou até mesmo por outras mulheres.
Lembramos ainda que o racismo e o machismo são produtos dessa imunda estrutura social e que o desafio das mulheres negras é vincular essas bandeiras do cotidiano à luta contra o capitalismo, senão estaremos falando do poder de Condoleezza Rice e não a noção de poder defendida por Ângela Davis, que é o nosso caso.
Para avançarmos de fato na luta, é necessário deixarmos de ser cúmplices com o machismo e desprendermos dos privilégios (ainda que miseráveis, comparado aos privilégios masculinos) para nossa identidade de resistência.

Texto: CATHIARA

Prove da maçã podre, prove da realidade...que não é nada doce.

4 comentários:

ILHA DE LESBOS disse...

Parabéns pelo blog!

ALGUÉM disse...

Parabéns pelo texto.

Gabriela Veloso disse...

Olá Pessoal!
Parabéns pelo Blog!!
Creio que ele começou com o pé direito nesse ano, que se incia e que o Grupo tem todo potencial nas mãos para um dia se institucionalizar.
Peço que Prossigam com o Grupo e não Venham Desistir dos ideais da Luta Pelos Reais Direitos de Tod@s Nós!
Um Salve a Vcs!
Com Desejo de Sucesso nessa Empreitada
Abraços

♥ Gabriela Veloso ♥

Niva disse...

FIQUEI EMOCIONADA! Cabe a cada um de nós tranformar ou pelo menos amenizar esta realidade. Abraço!